cut-cut

Londres, 7 de fevereiro de 2015, noite fria.

O homem coçava os ombros por dentro da blusa de lã verde-musgo. Seu pescoço, ardido, sustentava uma cabeça cheia de feridas. Do ombro, o sujeito elevava as mãos às cascas do couro cabeludo. Arrancava pedaços, olhava para as unhas e as levava à boca. Então, voltava aos ombros e o processo recomeçava: cut-up, cut-up, cut-up. O sangue brotava tímido debaixo do cabelo máquina-um. Finalmente, a palestra começava.

Disseram que William Burroughs sentia estar possuído por algo obscuro que lhe acometia a vontade. Um dia, reconheceu ter matado toda mulher que amou e, ao dizê-lo, chorou. Andou pela América do Sul e entregou-se ao xamanismo. Sabia dos spells, das bruxas, mas preparou escritas e rituais de homem para homens. Para aliviar a culpa, tratou as mulheres que lhe restaram com uma delicadeza fria: cut-out, cut-out, cut-out.

Enquanto o homem à minha frente coçava e coçava, o outro, na frente dele, dormia sentado e roncava: cut-in, cut-in, cut-in. Burroughs, em espírito, perambulou entre as cadeiras e atrapalhou a concentração dos ouvintes. Infernizou a audiência, causou microfonia e falhas na projeção. Não fiquei para os drinques, mas senti cheiro de enxofre e gosto de álcool na volta para casa. Ao chegar, rascunhei estas notas para não esquecer do evento de hoje, na October Gallery: Barry Miles, cut-ups as a revolutionary weapon.

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