Chiado

Lisboa, 16 de Abril de 2011, 22h48

Deixei o hotel cedinho e juntei-me aos que caminhavam pelas calçadas. Andamos descompassados sob um céu azul em ritmo de sábado. Enquanto becos reluziam debaixo de poemas e grafites, algo obscuro adensava as sombras projetadas pelos prédios, cá embaixo. Ainda era manhã quando reparei nos edifícios velhos que disputavam a minha atenção. Ao olhar para um deles vi exílios despencarem de janelas entreabertas. Solidões viscosas escorreram por suas paredes externas sem pintura. Sorrateiras, alojaram-se nos sapatos de homens e mulheres que subiam, a passos lentos, as ladeiras lisboetas. Chiado. Sacudi os pés e, aos pulos, fui para longe dali. 

Desci a Rua Garrett, sempre cuidadosa: não queria cruzar com faltas que pudessem trazer angústias para perto. Ou para dentro. Deixei-me invadir pela musicalidade da nossa língua que, do lado de cá, tem um tempero um pouco diferente. Talvez seja o sal deste imenso mar que existe entre nós. Segui a cadência das falas como quem navega a ouvir sereias e quis abandonar-me, encantada, perder-me do que sei ou do que imagino saber. 

Cruzei a Rua Anchieta e caí numa feira de milhares de livros. Encontrei, para além dos livros, camadas de tempo dentro de caixas, também aos milhares. Tenho essa mania de cultivar um respeito esquisito por coisas velhas. Por isso fiquei ali, por horas e horas, a venerar objetos, imagens e estórias que não são minhas. Cada coisa antiga para a qual olhei me devolveu pedaços de minha própria história. Quimeras. Foi então que percebi que estou a cerca de vinte anos de distância do meu primeiro desejo de Portugal. Seria tarde demais? 

Restou-me encarar o tempo e ir além da dor. Passei do Bojador e fui vasculhar as pilhas de cartas antigas. Cada envelope que segurei nas mãos me fez querer encontrar palavras de avós ou bisavós a quem nunca conheci. Li cartas endereçadas a Marias, Fátimas e Joanas, mas não havia nenhuma para mim. Passei então à seção de fotografias, pois talvez ali eu pudesse identificar lugares sobre os quais tinha ouvido falar na infância. Perdi-me por um momento nas paisagens amareladas. Por onde corre o rio Dourado que faz fronteira com as memórias de meu pai? Onde, naquelas fotografias, eu poderia finalmente tocar os castanheiros, as oliveiras, a ribeira, a escola ou o pombal? Olhei foto por foto e encontrei apenas não-lugares e rostos desconhecidos. Senti o desassossego passar apertado pelo vazio de origem que carrego no peito. 

Já passava das três da tarde quando comecei a me despedir da feira. Cruzei corredores e, na saída, fui capturada pela força de uma imagem. Era a foto de um fotógrafo a fotografar, em 1959. Olhei para o homem e me senti vigiada. Procurei fugir, perambular prateleiras, mas ele continuava lá, a tirar o meu retrato. Quantas imagens minhas ele já teria sequestrado daqui para aquele lugar, há 52 anos, em Figueira da Foz? Vinguei-me: como ele insistia em me encarar, comprei a foto, coloquei-o num envelope e o trouxe comigo. 

Voltei ao hotel. Agora, em frente ao espelho, olho para o meu reflexo no presente e, ao mesmo tempo, para o fotógrafo no passado. Ou seria o oposto? O fato é que estamos aqui já há algumas horas a negociar: enquanto ele faz fotos minhas, eu lhe devolvo as imagens que vou inventando nas linhas desta crônica.

Leave a Reply

Fill in your details below or click an icon to log in:

WordPress.com Logo

You are commenting using your WordPress.com account. Log Out /  Change )

Facebook photo

You are commenting using your Facebook account. Log Out /  Change )

Connecting to %s

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.

Create a website or blog at WordPress.com