— Bom dia, quero me matricular no módulo 1 do curso ‘Um teto todo seu’. Certo, irei até a escola hoje. Entendi, às catorze. Até já. Ao desligar o telefone, Mariane soltou um sorriso de canto de olho bem na cara do ex-marido. O homem, que ainda vivia na casa, meteu mais uma rodela de salame no pão fresco que acabara de buscar na padaria. Entre a primeira e a outra mordida, exercitou o sarcasmo de sempre: — Como é, mulher, vai consertar telhado a essa altura da vida? Empurrou a cadeira para trás e, ao se levantar, saiu espalhando migalhas pela casa. Mariane foi até o quarto, subiu no banquinho e pegou a caixa de madeira que vivia escondida no fundo do maleiro. Trancou a porta e espalhou o conteúdo secreto sobre a cama ainda desfeita. Olhou para as folhas de papel que iam se misturando umas às outras enquanto se acomodavam sobre os picos e vales das cobertas emboladas na última noite mal dormida. A mulher perdeu-se em pensamentos por um momento, tentando lembrar do sonho que a fizera despertar naquela manhã: — Eu estava numa cabana de madeira, sentada à porta, pés descalços. Contemplava uma imensa plantação de milho que se estendia à minha frente. Percebi um tornado no horizonte, a escuridão aumentava a cada segundo. Não tive medo. Fiquei à espera do furacão que varreria tudo. Eu sabia que a força daquele vórtice era a única saída para algo novo. Mariane sentiu a brisa que entrava pela janela do quarto. A cortina rendada esvoaçava com delicadeza e movia uma folha de papel ou outra, dando-lhes vida. Reuniu todos aqueles papéis numa pasta. Arrumou a cama e, em seguida, colocou o mesmo vestido que usou no dia em que desistiu do último curso no qual havia se matriculado, há décadas. Pegou o ônibus e desceu na praça da igreja matriz. Olhou para o relógio da torre e percebeu que ainda eram onze horas. Havia tempo o suficiente para flanar até a biblioteca pública onde poderia flertar com Virginia Woolf e, depois, fazer um lanche antes de seguir para a escola e formalizar a tão desejada matrícula. Encontrou a seção de literatura inglesa e, nela, a letra W. Passou os dedos sobre cada uma das lombadas de Virginia. — Um teto todo meu para apreciar de dentro o furacão que se aproxima... Desceu até a lanchonete. Almoçou um quiche com salada e depois pôs-se a caminhar até a escola. Ia a passos largos enquanto apertava contra o peito a pasta cheia de papéis e sonhos adiados. Encarou toda pessoa que cruzava o seu caminho. Olhou nos olhos de homens, velhos, mães com crianças de colo, avós, jovens mulheres, garotos, viúvas. Percebeu que todas aquelas pessoas lhe interessavam porque estava decidida a encontrar nelas a personagem que protagonizaria o seu primeiro livro, ainda a ser escrito durante as aulas do curso em que iria se matricular logo ali, a dois quarteirões. Chegou à escola. Preencheu formulários. Pagou as taxas e a primeira mensalidade. Seguiu para uma sala onde foi entrevistada pela professora que ministraria o primeiro módulo. Ela pediu à nova aluna que lhe mostrasse o que já havia produzido. Sobre a espaçosa mesa de reuniões, Mariane foi tirando da pasta todas as folhas, uma a uma. Já passava da centésima quando a professora se viu impelida a romper o silêncio: — Mariane... todas as folhas estão em branco? — Não, professora. Estão amareladas. Comprei-as para escrever meu primeiro livro, há trinta anos. Estão cheias do tempo que levei para chegar até aqui. Mas olhe, não se preocupe. Eu já tenho na cabeça toda a estrutura do livro que preencherá cada folha ao longo do curso. A história será sobre o amor de duas pessoas que, após vinte e cinco anos de uma vida afetiva em segredo, finalmente podem viver juntas. Foi algo que leu no fundo dos olhos de duas mulheres que caminhavam de braços dados debaixo das sombras fálicas projetadas pelos prédios mais altos da cidade.
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