A máquina de lembrar

— Um cinema. Entrei e já estava escuro. Na tela, imagens de objetos. Às vezes pareciam fotografias, outras vezes desenhos. Tudo em preto e branco. Depois de me concentrar por algum tempo no filme, olhei para os lados. Descobri que também deveríamos reparar nas sombras que estavam sendo projetadas pelo filme, nas paredes laterais da sala. Levantei. Minhas mãos tinham vida própria e apontavam para as sombras nas quais eu deveria prestar atenção. Parecia que o filme agora estava sendo projetado dentro da minha cabeça. Cada sombra para qual eu olhava trazia lembranças de um passado distante, uma era do século XVIII, outra do começo do século XX. Entendi que eu estava dentro de uma máquina de lembrar. E lembrar doía. 

— Nossa, que louco!

— E tem mais! Olhei para a tela de novo e percebi que o filme continuava sem parar. No filme agora havia duas mãos vestidas com luvas brancas de cetim, elas seguravam um frasco delicado de perfume. Enquanto uma das mãos abria o frasco, a outra esperava que a gota da essência oleosa caísse. Eu estava no fundo da sala e senti o cheiro do filme como se fosse um gosto ardido bem no fundo da minha garganta. O sabor era acastanhado, parecia algo com a cor do mogno. Fiquei assustada. Saí do cinema pela porta dos fundos. Então, segui a calçada espiralada que me levou a uma rampa. Subi. Passei por um jardim cheio de cactos. Um homem com os cabelos pretos compridos me chamou para pegar numa escultura porosa que mais parecia um coral, como aqueles da praia, sabe? Ela estava bem no centro do jardim, e brilhava! O homem me disse que, se eu a tocasse, lembraria de tudo o que já havia esquecido, desde todas as minhas vidas passadas. Foi aí que coloquei logo as duas mãos sobre aquela coisa porosa e uma luz esverdeada tomou conta de todo o espaço. Fechei os olhos e me concentrei bastante para lembrar de tudo. Aí acordei.

— Ah, não, mãe! Não conseguiu lembrar de nada? Que droga!

— Infelizmente não, Maria. Resultado: continuo sem saber quem eram o pai e a mãe da sua avó. Não recebi nenhuma pista. Como lhe disse, mamãe foi dada ainda bebê para uma família de fazendeiros. Não sei nada sobre a nossa história, ninguém sabe. 

Mariane e sua filha permaneceram imersas no silêncio, deitadas sobre as almofadas espalhadas pelo chão da sala. Maria olhava para a janela, preocupada com as árvores que balançavam com violência. 

— Vem chuvona por aí, mãe. Vou fechar a janela.

— Temporais, gosto tanto deles. Devastadores. Sinto como se fossem mensageiros tentando nos acordar de um sono profundo. Por isso amo os trovões, os relâmpagos, como se fossem lampejos de memória disse a mãe ao esticar o corpo. 

Mariane aproximou os pés do aquecedor elétrico e ficou admirando o alaranjado radiante emitido pela resistência do aparelho. Aquela era a única fonte de luz no ambiente. A penumbra se projetava em cada canto da sala à medida que a luz do dia ia se apagando. 

— Mãe, ouvi a campainha. Acho que a vovó chegou.

— Desce lá para abrir a porta, Maria. Rápido, pois está ventando muito. Cuidado com as escadas.

Maria saiu aos pulos para receber a avó. Mariane se levantou e antes de desligar o aquecedor, observou a própria sombra multiplicar-se sobre as paredes da sala. Acenou para elas. Sentiu-se acolhida de alguma forma pelo calor de sua linhagem materna. Acendeu a luz da sala e as sombras se foram. 

Desceu as escadas e deu um abraço demorado na mãe e na filha. Ao som da chuva forte, foram todas para a cozinha. Abriram uma garrafa de vinho, retiraram o assado do forno e brindaram ao ingresso de Maria no curso de História. 

— À Maria! Primeira mulher da família a ingressar numa universidade!   

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