Cintila

Olho para cima. Uma árvore se lança ao céu movida pelo desejo verde de unir copa às nuvens. O sol passa entre as folhas e lampeja. Lantejoulas invadem a paisagem. Tudo é parênquima, cor, textura. Sacudo meus braços com vistosas ganas infantis: quero o brilho todo só pra mim. Na piscadela seguinte, miro a pequena casa de madeira mais à frente. Azul. Meus olhos percorrem os três degraus vermelhos e encontram a mulher velha parada à porta. De onde estou não vejo seu rosto, mas sei que está a sorrir debaixo de cabelos de algodão. O tempo se arrasta. Minha mãe caminha em direção àquela casa. Um passo, outro e mais outro: estamos no mesmo lugar. Da porta, a velha derrama bênçãos sem precisar tocar nossas testas com ramos de arruda. A reza ancestral ecoa em cada letra que aqui acomodo na tentativa de voltar. Que as palavras chispem entre linhas como quem evoca as graças da benzedeira. 

cut-cut

Londres, 7 de fevereiro de 2015, noite fria.

O homem coçava os ombros por dentro da blusa de lã verde-musgo. Seu pescoço, ardido, sustentava uma cabeça cheia de feridas. Do ombro, o sujeito elevava as mãos às cascas do couro cabeludo. Arrancava pedaços, olhava para as unhas e as levava à boca. Então, voltava aos ombros e o processo recomeçava: cut-up, cut-up, cut-up. O sangue brotava tímido debaixo do cabelo máquina-um. Finalmente, a palestra começava.

Disseram que William Burroughs sentia estar possuído por algo obscuro que lhe acometia a vontade. Um dia, reconheceu ter matado toda mulher que amou e, ao dizê-lo, chorou. Andou pela América do Sul e entregou-se ao xamanismo. Sabia dos spells, das bruxas, mas preparou escritas e rituais de homem para homens. Para aliviar a culpa, tratou as mulheres que lhe restaram com uma delicadeza fria: cut-out, cut-out, cut-out.

Enquanto o homem à minha frente coçava e coçava, o outro, na frente dele, dormia sentado e roncava: cut-in, cut-in, cut-in. Burroughs, em espírito, perambulou entre as cadeiras e atrapalhou a concentração dos ouvintes. Infernizou a audiência, causou microfonia e falhas na projeção. Não fiquei para os drinques, mas senti cheiro de enxofre e gosto de álcool na volta para casa. Ao chegar, rascunhei estas notas para não esquecer do evento de hoje, na October Gallery: Barry Miles, cut-ups as a revolutionary weapon.