Mais notas sobre Tavira

Cheguei finalmente à vila da tua infância.
Desci do comboio, olhei, vi, procurei.
(Tudo isto levou o espaço de tempo de um olhar curioso).
Tudo é velho onde foste novo.
Desde já – velhas lojas, e outras franquias, despinturas nos velhos prédios
Automóveis que sempre vi (eu sei, não os havia antes)
Desbota o amarelo escuro ante uma porta entreaberta.
Tudo continua velho.
Sim, porque até o mais novo que eu é ser velho o resto.
A casa que abandonaram de novo é mais velha porque a abandonaram.
Paro diante da paisagem, e o que vejo és tu.
Outrora aqui imaginei-me esplendorosa aos 21 anos – andarilha do mundo
É aos 37 que desembarco do comboio [indolentona?]
O que desejei? Tudo.
Tudo, aliás, tenho a valer desejado.
Trago o meu anseio e a procura a pesar-me mais a mala…
De repente avanço segura, resolutamente.
Passou roda a minha hesitação
Esta vila da tua infância continua afinal uma cidade estrangeira
(Estou à vontade, não como sempre, perante o estranho, o que não me é nada)
Sou forasteira, tourist, transeunte.
E claro: é isso que sou.
Até em mim, meu Deus, até em mim.

Mais Notas Sobre Tavira é um projeto artístico desenvolvido em julho de 2013 na Residência Artística Réplica, Oficina Bartolomeu dos Santos, em Tavira, Portugal. Tavira é a cidade de nascimento de Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa. Busquei estabelecer diálogos entre o que eu pudesse descobrir sobre Álvaro de Campos, minhas próprias andanças em sua cidade natal e as buscas genealógicas que tenho empreendido em Portugal. No ateliê de gravura, desenvolvi 6 cartões-postais a partir do poema Notas sobre Tavira. Apropriei-me de fragmentos do poema para rememorar a primeira visita que fiz à aldeia de meu pai, Vilarinho dos Galegos, em 1997. Acrescentei notas íntimas às notas de Álvaro de Campos, enderecei poemas-postais, criei um diário e tracei um mapa para um lugar (in)existente localizado entre a partida e a chegada.

*Mais detalhes sobre os processos de criação vividos durante essa residência artística estarão disponíveis no artigo Paro diante da paisagem e o que vejo és tu: Residência Réplica revisitada, que será apresentado e publicado nos anais do 30o Encontro Nacional da Anpap – (Re)Existências, 2021.

Diário de viagem, 2013.
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Poema-postal, 2013. Carimbo e verniz mole sobre chapa de cobre. Dimensão total (mancha gráfica + suporte): 14,5 x 23 cm.
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Mapa (fragmento), 2013. Gravura em metal (verniz mole). Dimensão total (mancha gráfica + suporte): 60 x 100 cm.
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Mais notas sobre Tavira, 2013. Gravura em metal (tonner transfer e calcogravura). Dimensão da mancha gráfica: 26 x 17 cm.